É difícil compreender, aceitar e modificar a nossa rotina em função de alguém que precisa de nossa ajuda para também viver a sua rotina. Os papéis se misturam, as identidades são afetadas e, com o tempo, nos vemos angustiados. E com razão. Deixar de ser o que somos é adoecedor.
A pessoa dependente, mesmo inconsciente, também se angustia com isso, podendo usar diversos subterfúgios para extravasar sua energia bloqueada pelas limitações. Um deles, a manipulação. Outros, se fazem de vítimas, outros resistem aos cuidados. Qual desses perfis é o mais difícil de cuidar? Todos! Se você, se você não estiver cuidando de você.
A partir do momento em que você perde suas referências pessoais e passa como um trator em cima de seus desejos e necessidades achando que está cumprindo seu papel, que esta é sua sina, seu destino, sua obrigação, a tarefa do cuidar se tornará muito difícil. Desse jeito você não está entendendo nada sobre esta arte, fazendo tudo de forma compulsória.
Sim, cuidar é uma arte. Uma arte dinâmica, na qual sua beleza não aparece como um quadro pronto, exposto numa galeria. A cada dia você precisa reinventar o processo. Principalmente com o idoso dependente, que ora pode estar de um jeito, ora de outro. Daí, quem cuida tem que descobrir formas perfeitas para aquele instante ser “o mais tranquilo possível”, já que não dá para “estar tudo normal”.
O normal esperado parece ser o sonho do cuidador. Sim! O “estar tudo normal” não é a realidade, senão ele não seria cuidador. Então o cuidador sonha que “tudo poderia tanto sair bem hoje, eu poderia tanto não ter que me preocupar com isto ou aquilo…” .
Tudo bem! A questão é que você não escolheu ser cuidador, não é? É como se isto tivesse vindo pra você sem você pedir. É como se vida te obrigasse a ser cuidador e num momento histórico de tantas defesas para direitos, obrigar algo a alguém é uma agressão. A vida está te agredindo e você não tem como reagir. Então… PARE.
Reagir não é a solução do problema. E o cuidar não é compulsório. É inerente a nós, seres humanos, senão morremos. Dentre os seres vivos, o humano é o único que precisa de outro humano para se humanizar e sobreviver. E enquanto em vida, como os animais e plantas, se não exercitar seus contatos e relações deprime e morre.
Reagir ao cuidar é reagir contra a própria vida. É por isso que não dá pra escolher: se não cuida, morre!
É por isso que o cuidador não é um “tomador de conta” e passa a ser um artista que cria e recria a vida a cada dia. Para ser mais simples: cria possibilidades para se viver a vida que se tem. Portanto, um cuidador cuida. E o que é cuidar?
Bem, o significado de cuidar é bastante amplo, uma vez que tal palavra se origina do termo latim cogitas, que em português se tornou o verbo cogitar, ou seja, pensar, envolver, refletir, verificar possibilidades para se fazer ou obter algo. Este é o processo do cuidar. É isso que um cuidador faz (ou deveria fazer): verificar a todo instante o que deve ser aplicado, feito ou desejado em relação àquilo que se cuida. No nosso caso, o idoso dependente.
O sentido da palavra é vasto, pois envolve várias dimensões. Cito aqui algumas delas:
– sentimentos: o que sinto por aquele que cuido?
– relações: quais são as trocas afetivas entre quem cuida e quem é cuidado?
– práticas: como realizo as tarefas de cuidado?
– ética: qual a consideração tenho por mim e por quem cuido?
– necessidade vital humana: qual a importância para todos nós de cuidar e ser cuidado?
– atitude: quais valores visualizo e exercito enquanto estou cuidando de alguém?
Onde está a arte? Na prática de tudo isso, de forma equilibrada. Citando a parte ética onde regras, limites, considerações e responsabilidades devem ser praticadas, devemos pensar a partir do “eu primeiro” (o cuidador), que é a parte forte que sustentará o ser cuidado pelo tempo que ele precisar. Não é esse o tempo do cuidado? Sendo assim, de que adianta cuidar sem se cuidar? Ah! Aqui você vai me dizer: “então cuida que eu quero ver”! Sim, cuido através de negociações a todo instante.
– negociações comigo: o que realmente dou conta? Em que preciso de ajuda? Qual a melhor solução para aquilo que não dou conta e nem tenho ajuda?– negociações com quem é cuidado: em que o ser cuidado permite a liberação do cuidador? O que posso solicitar de fato ao ser cuidado para meu benefício? (sim! O ser cuidado pode dar benefícios ao cuidador. Nunca pensou nisso? Pois pense.).
Antes das negociações assino uma espécie de “termo de compromisso com parágrafo único”: aceitar que “não tem jeito senão cuidar” e que isso demandará meu tempo doado em prol do respeito, do afeto, da necessidade humana, dos meus valores.
Assim precisarei fazer alguns ajustes de horários, compromissos e desapegar de alguns (talvez vários!) desejos naquele momento. Então escolho ter uma vida simples enquanto estou cuidando de alguém que necessitará do meu tempo envolvido em sua sobrevivência. Sobrevivência esta que terá um fim, como para todos nós, mas que a caminhada para este fim merece ser da forma mais digna possível, porque merecer isso é direito garantido de QUALQUER ser humano, em QUALQUER condição.
Com uma vida mais simples e no momento do cuidar, estar livre de tantos desejos para isso ou para aquilo , o sofrimento diminui. Esta é a sábia rendição de quem cuida. E é aqui que conseguimos ser artistas na arte do cuidar . A vida se tornará mais leve enquanto se cuida. O cuidador poderá se preencher da gratidão emanada por quem é cuidado. Fazer o bem nos faz bem por isso. E esta é uma felicidade que não se compra, se pratica.
Mas cuidar não é escravidão como observamos a prática de muitos que cuidam. Mas para você, cuidador, não se sentir tão afetado, é importante que saiba muito bem até onde vão os seus limites e as reais necessidades do idoso dependente: horários, atenção, assistência, companhia, cuidados básicos.
Crie soluções e assim verá que criará inclusive tempo pra você fazer o que quiser. Assegure-se através de uma rotina bem distribuída e suficiente para os cuidados necessários. Faça um quadro, organize horários, demandas reais e importantes.
Tempos livres entre um momento e outro tem que existir pra todos nós, mesmo quando adoecemos. Todos nós temos que ter um tempo intocável para ficarmos em solitude, pensando “com nossos botões”, resolvendo questões internas etc.
No tempo livre do idoso, faça o seu tempo livre. Leia, medite, ouça uma boa música. E mesmo aproveitando o tempo livre pra passar roupas, crie uma forma divertida pra isso. Minha mãe por exemplo (que me ajuda neste trabalho) chamava pessoas agradáveis pra conversar enquanto passava as roupas dos idosos de quem cuidava. Ela morria de rir enquanto passava roupa, daí repentinamente seu “balaio” chegava ao fim.
Invista na felicidade e na simplicidade de se viver. Pense nisso e seja um artista na arte de cuidar.
Gal Rosa Desenvolvedora do Cuidador Familiar Terapeuta Ocupacional Especialista em Gerontologia
Empreendedora Social em Longevidade
Embaixadora LAB60+